Saiu do prédio onde trabalhava e caminhou calmamente até a parada de ônibus. O dia estava quente, como de costume, mas o sol se escondia entre as nuvens cinzas. Uma promessa de chuva para mais tarde…
Em menos de um minuto chegou à parada. Pensou na ironia que era o fato de que ela andava poucos passos para esperar o ônibus e andava praticamente um quilômetro para chegar ao seu carro, que antes ficava parado em um estacionamento gigante, junto a inúmeros outros.
Assustava-se com a preferência da maioria das pessoas por ter um carro. Dirigir no engarrafamento, procurar vaga em estacionamento lotado, o valor da gasolina, havia vários outros motivos que superavam o conforto de ter um meio de locomoção com ar condicionado… Mas esta era apenas a sua opinião.
Seu ônibus não demorou muito. Subiu no 512 e o encontrou quase vazio. Normal para o horário. Sentou-se bem ao fundo, ao lado da janela. A brisa quente e abafada que tocou seu rosto quando o veículo entrou em movimento fez com que ela fechasse os olhos e aproveitasse a viagem.
Vender o carro foi a melhor coisa a fazer, disso ela não se arrependia. Gostava daquele momento em que era expectadora da vida. Ficava observando as pessoas nas ruas, ou os demais passageiros que conversavam ou se preocupavam com a própria vida.
Abriu os olhos e viu um garoto e uma garota sentados lado a lado no banco da frente. Não pareciam ter mais de 19 anos… Deviam estar voltando da faculdade, pois seguravam livros e cadernos. Prestou atenção à conversa:
– Qual o nome do curso que você está fazendo, mesmo?
– Ciências Sociais.
– Acredita que nunca tinha ouvido falar? Parece maravilhoso.
– E é.
– Você me empresta esse livro do Durkheim? Queria saber mais sobre as ideias dele.
– Leva. Mas devolve! Tu vais curtir.
– Prometo.
– Devolver ou curtir?
– Os dois. Olha como é chato o que eu tenho que estudar… Francamente, meu curso não é nada animador… Fontes… Nada a ver…
– Tem a ver sim! Essa parte é importante… Tudo é importante…
– Queria ler Harry Potter. Será que vai demorar muito para lançarem o novo livro?
– Vixe, tu gosta dessas coisas, é?
– Você já leu?
– Vi os filmes. Os dois primeiro só. Bobinho…
– Não é a mesma coisa que ler os livros.
– Tu vai gostar mais de Durkheim, aposto.
– Duvido muito.
– Ah, então esse papinho de que o que eu estudo é legal só é empolgação, né? Não há nada melhor que Harry Potter…
– Não foi isso que eu quis dizer. Eu só… Eu não tenho como dizer qual o melhor se só li um dos concorrentes!
– Essa literatura fantasiosa não tá com nada… Coisa de criança. Tu tá na faculdade, francamente…
– Ei! Eu a-ca-bei de entrar na faculdade. E não é pra criança… Meu irmão é 9 anos mais velho que eu e adora.
– Deve ser bitolado que nem tu…
– Bitolado?!
– É. Esse mundinho aí de mentiras…
– Han? Como assim? Para de rir!
– Mas é engraçado, pô…
– O que é engraçado?
– Tu aí com esse teu cabelo verde e esse discurso de gostar de Durkheim. Não é coerente com o que tu és.
– E o que você sabe sobre mim? A gente mal se conhece…
– Sei o colégio de onde tu veio. Aquele de riquinho… Gente diferenciada…
– Ai, me poupe! Não tenho nada a ver com aquelas pessoas… Não é à toa que…
– Que o quê? Que o teu cabelo é colorido? Quer mostrar o quanto tu não pertence a esse mundo do qual tu veio? Não adianta nada se as tuas ideias continuam as mesmas…
– Eu tenho que parar de gostar de Harry Potter, então?
– Claro que não! Admito, isso também é legal. Mas olha em volta. Não te parece interessante tudo o que acontece agora?
– Parece tudo muito normal… Pessoas trabalhando, indo ou voltando da escola, conversando ou discutindo, uma certa criminalidade rolando…
– O crime é normal! Tu já sabe mais sobre Durkheim do que tu imagina!
– Sério? Tá vendo? Não preencho o estereótipo dos alunos do CEAM…
– Pode ser que não…
– E você? Está generalizando ao dizer que todo mundo do CEAM é bitolado só porque é “escola de riquinho”. Isso também não é ser bitolado?
– Provavelmente. Todo mundo é bitolado.
– Bela conclusão… Ah, não, olha só! Um gatinho atravessando a rua…
– Vai virar pastel…
– Não fala isso!
– Leva ele pra casa…
– Já tenho três. Se eu aparecer com mais um, sou expulsa de casa… Ufa, atravessou! Muita sorte… Ai, odeio ver animais de rua.
– E gente?
– Gente? Gente também… Mas pelo menos uma pessoa sabe atravessar a rua… Mas realmente… Vi um menino crescer nas ruas, ele fica lá perto de casa… Perdeu a infância pedindo dinheiro nos sinais… Iguais a ele tem tantos… Talvez seja por isso que às vezes, fugir para um mundo de fantasia seja tão tentador…
– É. Eu te entendo.
– Há dois segundos atrás, tava me criticando… Diria até que me ofendendo…
– Deixa disso, tava só brincando.
– Você gosta de ser polêmico, nunca vi.
– Só gosto do debate.
– Nunca gostei de debates…
– Por que não?
– Não sei… Acho que nunca sei o que responder.
– Sabe sim. Acabou de participar de um.
– Isso não valeu…
A buzina do ônibus fez a expectadora piscar algumas vezes e olhar em volta: o ônibus estava lotado e ela já teria que descer daqui a duas paradas. Ao levantar e caminhar em direção à saída, ela mirou o banco a sua frente e viu uma senhora idosa recebendo de sua provável neta um tutorial de como mexer em um smart phone. Os jovens tagarelas já tinham saído daquele ônibus há muito tempo.